Altar dos Dias 2014
ALTAR DOS
DIAS
Olhamos,
assombrados. Olhamos e assalta-nos a incerteza da percepção, num desejo de
baixar as pálpebras. Olhamos assim, em instantes de cegueira, a sombra que
nos esconde o visível. Decidimos então
não baixar a cabeça, não fechar os olhos, e os fantasmas desta pintura, por
vezes petrificados, por vezes renascendo em raízes de árvores tombadas,
iluminam-se dentro de nós, passando pela retina
e selecionando-se no bloco cerebral da visão, entre milhões de outras
imagens decorrentes do que percepcionamos dia a dia, porventura no fundo dos
próprios sonhos.
De uma
aparência por vezes sombria, esta arrebatadora pintura de Maria João Franco,
aliás como nos próprios desenhos, agrega em cada apresentação conjuntos de iluminações — um intenso desejo de
clarificar as metamorfoses interiores do ver e do ser, memória trágica e
romântica que emerge dos nervos sob a pele e se propaga num espaço feito de coisas quase sempre inomináveis,
indiciando diversas aparições do mundo, gente e bichos, corpos aparentemente
amputados ou de cabeças ao alto, talvez gritando, como que mostrando o vale
torturado antes da vida emergir dessa cova cósmica.
Tudo parece lítico, modelado por uma civilização pós apocalipse, mas o
saber daquelas forças registadas na tela obriga-nos a ressuscitar depois do
próprio século XX. E então tudo se aproxima do olhar aberto, da obra aberta,
ainda que ligeiramente tocada por morfologias de algum Prometeu agrilhoado, de
algum Cristo crucificado, de algum Dilúvio capaz de arrancar quase todas as raízes
da terra, deixando-as escancaradas e de hastes ao alto. É verdade que esta
visão parece não exprimir a arte destroçada do século XX, essa colossal «soma
de destruições», mas é daí e da Bíblia relida que tudo se espalha por este
mundo nocturno a crescer entre desastres para nos atormentar um pouco
ao jeito das obras aqui expostas, de ontem ou de hoje, denegando a tecnologia
de ponta e gritando, da dor dos cortes e das metamorfoses kafkianas, o medo do
colapso na contracção futura do Universo sobre si mesmo, até ao nada.
A
inquietante paisagem que estes quadros formam entre si, agrupáveis por partes
de possíveis semelhanças morfológicas e gráficas, é uma espécie de memória do
futuro, uma forma humana fechada sobre si ou sentada em concha, na hora de um
parto solitário; é também a narrativa da crise social, farrapos de gente,
enforcados suspensos do nada, cãos ou lobos farejando por baixo; e a par dos
riscos que reescrevem gestos, é ainda o indício gráfico do grito ou do
chamamento; depois (ou antes) os troncos tombados de árvores centenárias,
talvez petrificadas no espaço onde as
rochas ficaram nuas, texturais, endurecidas pela luz forte dos incêndios em
volta.
Claro que a
arte não explicada nada, nem mesmo quando ilustra
as encenações do visível ou retrata impossivelmente os santos que nunca
existiram: ainda assim é dentro da sua reinvenção das coisas e dos seres que
podemos palpitar ao sentir as rasuras que nos fazem prever o infinito ou nos
inventam, a morte pelo homem na crucificação reformulada por Grunewald: é desse
universo que vem o futuro, com os seus mortos de ontem.
Rocha de Sousa / 2014