PRODUÇÃO de objectos / produção ARTÍSTICAÉ uma das características do homem a produção de objectos e na sua factura intervêm componentes de ordem vária que decorrem de intenções diferenciadas.
A função de cada um dos objectos produzidos está em estreita ligação com a satisfação de fenómenos de necessidade. Mas há um momento de satisfação não necessária que ultrapassa o sistema de necessidades elementares. A produção de objectos com arte é a primeira fase de ultrapassagem do sistema de necessidades primário.
O objecto – por vezes estético – (por vezes ético) é ultrapassado na sua intenção com o decorrer do tempo e surge um significado-outro, desligando-o do referente (real ou imaginário) que lhe estava na base. No fundo, quando o objecto perde função imediata, torna-se objecto de contemplação e surge como obra de arte, quando ele não representa, de facto, e antes de mais, um determinado estádio de evolução do homem, não no sentido plástico, mas no sentido de relação homem-natureza.
O que acontece é que os objectos que perderam função são hoje sublimados, no sentido de se situarem de se situarem no plano de organizações sígnicas representativas de estádios de civilização diferentes: é sempre sinal da passagem do homem sobre o mundo e da sua vitória sobre os materiais, no sentido em que os domina e lhes dá forma.
E é só nesse sentido que podemos dizer que tudo o que o homem faz tem um carácter estético.
O homem, na sua necessidade natural, como ser gregário, e, individualmente, como ser dominador, manipulador, tende a dar forma a todas as suas acções. É nessa tendência que está implícita uma estética – e dela surgirá porventura o fenómeno artístico ou para-artístico
Os vários conceitos de arte estiveram sempre dependentes do binómio “forma-função”.
Na medida em que a função se vai sobrepondo à forma criam-se objectos estéticos – as sub-categorias de objectos – que ao abrirem um novo espaço formal tentaram introduzir-se no campo da arte. O pressuposto estético fica aquém do artístico e a apologia da norma e do funcional
Torna-se perfeitamente apologética, como consequência daquilo que lhe falta: a dinâmica poética.
A obra de arte não resulta de conceitos estéticos, mas da própria vida: justifica-se a si própria na sua capacidade ambivalente de a assimilar e projectar.
Contudo, a capacidade expressiva de um objecto não e forçosamente índice de fenómeno artístico. Ela surge muitas vezes por empatia perceptual imposta por ditaduras de gosto. Por isso a arte favorece o diletantismo “estético” e o snobismo cultural. E os seus agentes na sua anciã de auto promoção subsidiam intelectualmente e não só a produção maciça de objectos para – estéticos. O fenómeno artístico esta mais ligado ao que esta subjacente ou supra jacente a fisicidade do objecto. E esta aqui o fulcro do problema: o fenómeno artístico surge quando, a partir de uma concepção e uma determinada execução de técnica se introduz no mundo um mundo que nele não existia. O artista não enfeita a sociedade, antes a completa, e essa complementaridade, se incomoda, tanto melhor…
Confrontamo-nos hoje, com efeito, com uma crise que em si, e por sua vez, se confronta com a ideia de que o saber manipular os materiais é sinal de estatuto artisticamente inferior. Corresponde socialmente a uma atitude de desprezo pelo trabalho manual assumido como saber.
Certas correntes actuais, bastante na linha deste pensamento, contradizem-se, na medida em que consideram já o objecto artístico o simples acto do fazer (puro acto lúdico), desprezando a partida o acto de dominar o fazer, em função do conceber. Não se trata de trabalho, mas de simples imitação de trabalho. O truque só é eficaz enquanto esconde o artifício. A displicência da factura e o desprezo acintoso pela estrutura artificializa esta, na medida em que a transforma de suporte da imagem em imagem em si mesma. Ao simular como autentica a atitude, o objecto concretiza-a, mas esvazia-se como finalidade artística.
Este esteticismo apriorístico e normativo que contraditoriamente se apresenta como anti-norma, funcionaliza o objecto tornando-o ilustrativo da teoria e da moda, retira-lhe finalidade intemporal, torna-se simples exemplo de uma teorização estética, mas afasta-o da arte, pois que a obra de arte, enquanto produto humano não pode, não deve tornar-se simplesmente imitação de si própria.
Se a arte começou por reflectir uma tentativa de o homem dominar a Natureza, imitando a sua vitória, caminhou para a imitação da Ideia, para a imitação da Natureza ou como processo representacional de imitação do homem, passando inclusivamente pela representação da sua realidade interior.
Sob pressão d estéticas normativas algumas correntes actuais tentam a imitação do fazer: no fundo, assistimos a casos em que os artistas se limitam obsessivamente a imitarem-se a si próprios. E isto porque os valores de mercado, a assinatura tornada objecto de consumo como sinal de troca valor-signo de estatuto social, as conexões estabelecidas a partir de relações confusas entre os conceitos de objecto estético e objecto artístico, a indefinição falaciosa com que a crítica de arte mal autorizada faz eleger a “objecto de arte” uma qualquer moda ditada pelas associações internacionais de críticos, faz com que a história da arte hoje corra o risco de ser a história dos êxitos fracassados a curto prazo. Muitas das obras actuais serão, com toda a certeza encaradas no futuro como “cheques sem cobertura”,
O objecto artístico contemporâneo é hoje extremamente difícil de definir, de tal modo o conceito de “arte” tem sido alargado e empobrecido. Digamos antes que de conceito se passou “pré-conceitos”. Parece haver aqui uma contradição; mas se considerarmos que o pré-conceito se baseia em falsos valores, eles próprios não autorizam a formulação de qualquer espécie de conceito,
Pois até o conceito de “conceito” não existe, porque não há critério que defina o campo em que determinado objecto se coloca e se oferece à análise.
Será o entendimento do fenómeno artístico que limpará o terreno e definirá o que é arte hoje.
Mas antes haverá que estabelecer uma deontologia da critica do nosso tempo.
Lisboa, Julho 1987 Maria João Franco